"A devoção à Eucaristia é a mais nobre de todas as devoções, porque tem o próprio Deus por objeto; é a mais salutar porque nos dá o próprio Autor da graça; é a mais suave, pois suave é o Senhor". (S. Pio X)
"Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa.”
A Eucaristia é o maior e o mais sublime de todos os Sacramentos, pois trata do verdadeiro Corpo, Sangue Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O próprio momento e as circunstâncias solenes em que foi instituído indicam sua importância e a veneração que Cristo queria infundir nas almas de seus discípulos por este admirável Sacramento. Para isto reservou Ele as últimas horas que Lhe restavam de convívio com os Apóstolos antes de caminhar para a morte, pois "as últimas ações e palavras que fazem e dizem os amigos no momento de se separar, gravam-se mais profundamente na memória e imprimem-se mais fortemente na alma."
Naqueles instantes - poder-se-ia afirmar - Seu adorável Coração pulsava com santa pressa de realizar, no tempo, aquilo que desde toda a eternidade contemplara em Sua ciência divina. Suas palavras "desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer" (Lc 22, 15), deixam transparecer claramente os inefáveis anseios de amor do Deus Encarnado por todos os homens, a "multidão de irmãos" (Rm 8, 29), pelos quais iria oferecer-Se naquela mesma noite.
O desejo do Divino Mestre era de que o mistério de Seu Corpo e Sangue se perpetuasse pelos séculos futuros: "Fazei isto em memória de Mim" (Lc 22, 19).
A este respeito, diz São Tomás de Aquino: "Este Sacramento é especialmente um memorial da Paixão de Cristo; e convinha que a Paixão de Cristo, pela qual Ele nos redimiu, fosse prefigurada para que a Fé dos antigos se encaminhasse ao Redentor."
Nosso Senhor Jesus Cristo, o verdadeiro Pão da proposição, oferece-Se em alimento a todos os fiéis, sem exceção, dando aos homens um privilégio do qual aos Anjos, por sua natureza, não é dado gozar.
"Coisa admirável! Os pobres, os servos e os humildes comem o seu próprio Senhor." - canta-se no hino Sacris Solemnis, também composto por São Tomás de Aquino para a festa do Corpus.
Origem da festa de "Corpus Christi"
Vários motivos haviam conduzido a Sé Apostólica a dar esse novo impulso à piedade eucarística, estendendo a toda a Igreja uma devoção que já se praticava em certas regiões da Bélgica, Alemanha e Polônia. O primeiro deles remonta à época em que Urbano IV, então membro do clero de Liège, na Bélgica, analisou de perto o conteúdo das revelações com as quais o Senhor Se dignara favorecer uma jovem religiosa do mosteiro agostiniano de Mont Cornillon, próximo a essa cidade.
Em 1208, quando contava apenas 16 anos, Juliana fora objeto de uma singular visão: um refulgente disco branco, semelhante à lua cheia, tendo um dos seus lados obscurecido por uma mancha. Após anos de intensa oração, fora-lhe revelado o significado daquela luminosa "lua incompleta": ela simbolizava a Liturgia da Igreja, à qual faltava uma solenidade em louvor ao Santíssimo Sacramento. Santa Juliana de Mont Cornillon fora por Deus escolhida para comunicar ao mundo esse desejo celeste.
Mais de vinte anos se passaram até que a piedosa monja, dominando a repugnância proveniente de sua profunda humildade, se decidisse a cumprir sua missão, relatando a mensagem que recebera. A pedido seu, foram consultados vários teólogos, entre o quais o padre Jacques Pantaléon - futuro Bispo de Verdun e Patriarca de Jerusalém -, e este mostrou-se entusiasta das revelações de Juliana.
Transcorridas algumas décadas, e já após a morte da santa vidente, quis a Divina Providência que ele fosse elevado ao Sólio Pontifício, em 1261, tomando o nome de Urbano IV.
Que seria a Igreja sem a Eucaristia? Seria um museu dotado de coisas antigas e preciosas,
mas sem vida. (...) Por isso Jesus Cristo na Eucaristia é o coração da Igreja. (...)
(D. Antonio Augusto dos Santos Marto, Bispo Leiria-Fátima)
Encontrava-se esse Papa em Orvieto, no verão de 1264, quando chegou a notícia de que, a pouca distância dali, na cidade de Bolsena, durante uma Missa na Igreja de Santa Cristina, o celebrante - que passava por provações quanto à presença real de Cristo na Eucaristia - vira transformar-se em suas próprias mãos a Sagrada Hóstia em um pedaço de carne, que derramava abundante sangue sobre os corporais.
A notícia do milagre espalhou-se rapidamente pela região. Informado de todos os detalhes, o Papa mandou trazer as relíquias para Orvieto, com a reverência e a solenidade devidas. E ele mesmo, acompanhado de numerosos Cardeais e Bispos, saiu ao encontro da procissão formada para conduzi-las à catedral.
Pouco depois, em 11 de agosto do mesmo ano, Urbano IV emitia a bula Transiturus de hoc mundo, pela qual determinava a solene celebração da festa de Corpus Christi em toda a Igreja. Uma afirmação contida no texto do documento deixava entrever ainda um terceiro motivo que contribuíra para a promulgação da mencionada festa no calendário litúrgico: "Ainda que renovemos todos os dias na Missa a memória da instituição desse Sacramento, estimamos, todavia, conveniente que seja celebrada mais solenemente pelo menos uma vez ao ano, pois na Quinta-Feira Santa a Igreja ocupa-se com a reconciliação dos penitentes, a consagração do santo crisma, o lava-pés e muitas outras funções que lhe impedem de voltar-se plenamente à veneração desse mistério".
A Eucaristia passa a ser o centro da vida cristã
A partir desse momento, a devoção eucarística desabrochou com maior vigor entre os fiéis: os hinos e antífonas compostos por São Tomás de Aquino para a ocasião - entre os quais o Lauda Sion, verdadeiro compêndio da teologia do Santíssimo Sacramento, chamado por alguns o credo da Eucaristia - passaram a ocupar lugar de destaque dentro do tesouro litúrgico da Igreja.
No transcurso dos séculos, sob o sopro do Espírito Santo, a piedade popular e a sabedoria do Magistério infalível aliaram-se na constituição dos costumes, usos, privilégios e honras que hoje acompanham o Serviço do Altar, formando uma rica tradição eucarística.
Ainda no século XIII, surgiram as grandes procissões conduzindo o Santíssimo Sacramento pelas ruas, primeiro dentro de uma âmbula coberta, e mais tarde exposto no ostensório. Também neste ponto o fervor e o senso artístico das várias nações esmeraram-se na elaboração de custódias que rivalizavam em beleza e esplendor, na confecção de ornamentos apropriados e na colocação de imensos tapetes florais ao longo do caminho a ser percorrido pelo cortejo.
Os Papas Martinho V (1417-1431) e Eugênio IV (1431-1447) concederam generosas indulgências a quem participasse das procissões. Mais tarde, o Concílio de Trento - no seu Decreto sobre a Eucaristia, de 1551 - sublinharia o valor dessas demonstrações de Fé:
"O santo Sínodo declara que é piedoso e religioso o costume, introduzido na Igreja de Deus, de celebrar todos os anos com singular veneração e solenidade, em dia festivo e peculiar, este excelso e venerável Sacramento, levando-O em procissões por vias e locais públicos com reverência e honra".
O "Lauda Sion"
Lauda Sion Salvatorem, lauda ducem et pastorem in hymnis et canticis
tuos ibi commensales, cohæredes et sodales, fac sanctorum civium
Louva, Sião o Salvador, o teu guia, o teu pastor com hinos e cânticos; admiti-nos no Céu,
à Vossa mesa, e fazei-nos coerdeiros na companhia dos que habitam a Cidade Santa.
A palavra “Sião” significa, essencialmente, “fortificação”. Na Bíblia, Sião é a cidade de Davi e a cidade de Deus. À medida que a Bíblia progride, a palavra Sião deixa de se referir à cidade física e passa a assumir um contexto espiritual.
A sequência da Missa de Corpus Christi é constituída por um belíssimo hino gregoriano, intitulado Lauda Sion. Belíssimo por sua variada e suave melodia, e muito mais pela letra, ele canta a excelsitude do dom de Deus para conosco e a presença real de Jesus, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, no pão e no vinho consagrado.
A própria origem desse cântico é envolta no maravilhoso tipicamente medieval:
Urbano IV encontrava-se em Orvieto, quando decidiu estabelecer a comemoração de Corpus Christi. Estavam coincidentemente naquela cidade dois dos mais renomados teólogos de todos os tempos, São Boaventura e São Tomás de Aquino. O Papa os convocou, assim como a outros teólogos, encomendando-lhes um hino para a sequência da Missa dessa festa.
Conta-se que, terminada a tarefa, todos deveriam se apresentar diante do Papa e cada um deveria ler sua composição.
O primeiro a fazê-lo foi São Tomás de Aquino, que apresentou então os versos do Lauda Sion.
São Boaventura, ato contínuo àquela leitura, queimou seu próprio pergaminho, não sem causar espanto em São Tomás que perguntou "por quê"? O santo franciscano, com toda a humildade, explicou-lhe que sua consciência não o deixaria em paz se ele causasse qualquer empecilho, por mínimo que fosse, à rápida difusão de tão magnífica sequência escrita pelo dominicano.
Quais devem ser nossa atitude e nossos sentimentos de alma ao considerarmos o extremo de bondade de Deus feito Homem que, tendo-Se encarnado, não abandonou a criatura resgatada por Seu Sangue, mas mantém-Se presente, assistindo e amparando todos os que d’Ele queiram se aproximar?
Síntese teológica, em forma de poesia.
Aquilo que São Tomás ensinou em seus tratados de Teologia a respeito da Sagrada Eucaristia, ele o expôs magistralmente em forma de poesia no Lauda Sion.
Trata-se de verdadeira obra de literatura, que brilha pela profundidade do conteúdo e pela beleza da forma, elevação da doutrina, acurada precisão teológica e intensidade de sentimento. O ritmo flui de modo suave, até mesmo nas estrofes mais didáticas. A melodia - cujo autor é desconhecido - combina belamente com o texto. A unção é inesgotável.
Repassemos alguns trechos desse célebre cântico:
"Lauda Sion"
Louva Sião, o Salvador, louva o guia e pastor com hinos e cânticos.
Tanto quanto possas, ouses tu louvá-Lo, porque está acima de todo o louvor e nunca o louvarás condignamente.
É-nos hoje proposto um tema especial de louvor: o pão vivo que dá a vida.
É Ele que na mesa da sagrada ceia foi distribuído aos doze, como na verdade o cremos.
Seja o louvor pleno, retumbante, que ele seja alegre e cheio de brilhante júbilo da alma; porque celebramos o dia solene que nos recorda a instituição deste banquete.
Na mesa do novo Rei, a páscoa da nova lei põe fim à páscoa antiga.
O rito novo rejeita o velho, a realidade dissipa as sombras como o dia dissipa a noite.
O que o Senhor fez na Ceia, nos mandou fazê-lo em memória Sua.
E nós, instruídos por Suas ordens sagradas, consagramos o pão e o vinho em hóstia de salvação.
É dogma de fé para os cristãos que o pão se converte na carne e o vinho no sangue do Salvador.
O que não compreende nem vês, uma Fé vigorosa te assegura, elevando-te acima da ordem natural.
Debaixo de espécies diferentes, aparências e não-realidades, ocultam-se realidades sublimes.
A carne é alimento e o sangue é bebida; todavia debaixo de cada uma das espécies Cristo está totalmente.
E quem o recebe não o parte nem divide, mas recebe-o todo inteiro.
Quer o recebam mil, quer um só, todos recebem o mesmo, nem o recebendo podem consumi-lo.
Recebem-no os bons e os maus igualmente, todos recebem o mesmo, porém com efeitos diversos: os bons para a vida e os maus para a morte.
Morte para os maus e vida para os bons: vede como são diferentes os efeitos que produz o mesmo alimento.
Quando a hóstia é dividida não vaciles, mas recorda que o Senhor encontra-se todo debaixo do fragmento, quanto na hóstia inteira.
Nenhuma divisão pode violar as substâncias: apenas os sinais do pão, que vês com os olhos da carne, foram divididos! Nem o estado, nem as dimensões do Corpo de Cristo são alteradas.
Eis o pão dos Anjos que se torna alimento dos peregrinos: verdadeiramente é o pão dos filhos de Deus que não deve ser lançado aos cães.
As figuras o simbolizam: é Isaac que se imola, o cordeiro que se destina à Páscoa, o maná dado a nossos pais.
Bom Pastor, pão verdadeiro, de nós tende piedade. Sustentai-nos, defendei-nos, fazei-nos na terra dos vivos contemplar o Bem supremo.
Ó Vós que tudo o sabeis e tudo o podeis, que nos alimentais nesta vida mortal, admiti-nos no Céu, à vossa mesa e fazei-nos coerdeiros na companhia dos que habitam a cidade santa.
Amém. Aleluia.
Senhor meu, Jesus Cristo, que, por amor aos homens, ficais dia e noite neste Sacramento, todo cheio de misericórdia e amor, esperando, chamando e acolhendo todos os que vêm visitar-Vos, eu creio que estais presente no Sacramento do altar... (Santo Afonso de Ligório)
A Eucaristia é a saúde da alma e do corpo, remédio de toda enfermidade espiritual, cura os vícios, reprime as paixões, enfraquece e vence as tentações, comunica maior graça, confirma a virtude nascente, confirma a fé, fortalece a esperança, inflama e dilata a caridade.
(Imitação de Cristo, Tomás de Kempis)